vista, em que o povo beijou a boca dos seus soldados, e
fez jardins de cravos na ponta das espingardas, de alguma
forma exorcizando a céptica e inelutável máxima do dita-
dor Mao Tsé-Tung, nesse dia de amor à primeira vista
esboroou-se o regime de partido único (ou de partido
nenhum, na verdade) que acinzentava o país e bloqueava
a liberdade: liberdade de ler, de falar, de viajar até, liberdade
de rompermos com uma imposta e impostora solidão, tão
orgulhosa como patética. Um sobressaltado Salazar deu,
nesse dia, uma desconfortável segunda volta no seu túmulo.
A liberdade chegou como uma inundação: as margens
estreitas em que, direitinho, calado e virado para a frente,
se encarreirava Portugal foram estilhaçadas: proliferaram
partidos políticos; levantaram-se do chão incendiários edu-
cadores do povo; agitaram-se estandartes; colaram-se car-
tazes; pichagens pintaram e redesenharam paredes; ruas,
largos e avenidas entupiram-se com torrentes de gente
em loucas manifs; slogans e palavras de ordem atroaram
os céus. O recalcado silêncio de quase cinco décadas foi
varrido por um exuberante caudal de palavras: Portugal
afogueava-se para falar, para gritar, para escrever, atrope-
lando se preciso fosse a ortografia. Um dilúvio de palavras.
Vimos, ouvimos e lemos: eis o que este livro não ignora.
É desse zeitgeist, desse ar do tempo, dessa mundi-
vidência de que este livro quer ser a mais despretensiosa
testemunha. Este livro quer ser uma viagem no tempo.
Primeiro, num preâmbulo mansinho, nocturno, vamos visi-
tar e descrever, hora a hora, os incidentes e o suspense da
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