Virgílio Castelo
– Porra! Não acredito!!… Estou outra vez num escritório?!
Amónada da alma começava adesdobrar os segmentos entorpecidos,
em busca da luz de onde nascera há quarenta eseteanos, enquanto oespírito
que neste mundo calhara em sorte ser Fernando António Nogueira Pessoa
se interrogava sobre onenhures onde tinha ido parar depois de ter deixado
ocorpo ajazer numa cama do Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa,
às oito emeia da noite do dia 30 de Novembro de 1935.
Acabara de desencarnar, não sem alguma agonia, ede nada lhe adian-
tara ter pedido os óculos antes de iniciar otrespasse, uma vez que aevi-
dência de estar ainiciar uma nova vida no Além confinado àcondição de
amanuense era por demais incontornável.
Naverdade, as instalações do escritório que se apresentavam perante
asua percepção eram, para dizer omínimo, grandiosas, eocupavam todos
os ângulos de possível vislumbre, para onde quer que ele se virasse, mesmo
sem se mexer. Estar morto trazia como bónus um giroscópio para abarcar
oinfinito? Não percebia bem, pois oestado de choque em que se encontrava
não lhe permitia ainda alucidez necessária para avaliar todos os parâmetros
da nova situação. Para onde quer que dirigisse aatenção, só lhe apareciam
secretárias com vultos atrabalhar, enão conseguia perceber onde estavam
as portas eas janelas, nem de que modo oespaço se delimitava para criar
aquela imagem familiar que marcara asua vida na Baixa lisboeta, eagora se
ampliava, como naqueles filmes americanos onde centenas de funcionários
anónimos eidênticos se aninhavam em geometrias rígidas aperder de vista.
Não sabia se acomoção que ainda oabalava se devia àmudança de
estatuto de vivo para morto, ou àestupefacção perante ocenário de cente-
nas, talvez milhares, de mesas, cadeiras ecorpos difusos que se dispunham
no vazio, num alinhamento que pressupunha uma função qualquer. Mas
qual? Que raio de expediente se podia despachar no Céu? Sede facto era
Miolo_Haja Deus.indd 5Miolo_Haja Deus.indd 5 29/01/2024 10:55:5329/01/2024 10:55:53